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Ao unir cultura popular e IA, professor ganha prêmio de educador do ano

Helder Guastti, professor da rede pública de João Neiva (ES) e vencedor do Prêmio Educador Nota 10 em duas categorias, fala sobre integração de tecnologia ao ensino fundamental

João Neiva é uma pequena cidade do Espírito Santo, com aproximadamente 15 mil habitantes. As histórias e causos locais populares inspiraram um projeto pedagógico que acaba de ganhar reconhecimento nacional.

Helder Guastti, professor de língua portuguesa da Escola Municipal de Ensino Fundamental Pedro Nolasco, é o mais novo Educador do Ano no Prêmio Educador Nota 10. Sua proposta pedagógica ganhou também a categoria Inovação e Tecnologia.

A atividade ganhou o nome de uma expressão comum da região joanense: “Como diz o outro”, que serve como uma introdução para uma sabedoria popular, sem precisar especificar quem seria o autor dessa frase. “Ao final, a expressão trata sobre nós mesmos, as pessoas que vivem e constroem a cultura”, explica o educador.

Desenvolvida com 21 estudantes do 5º ano, a proposta é voltada para o resgate da cultura local, reunindo contos populares, memórias transmitidas de geração em geração, quadrinhas, trava-línguas e outras manifestações da tradição oral. Além disso, o trabalho inclui o uso de ferramentas de inteligência artificial na criação das ilustrações que compuseram o livro produzido como resultado final do projeto.

Criado em 1998, o Educador Nota 10 é correalizado pelo Instituto SOMOS, organização sem fins lucrativos mantida pela Somos Educação, e reconhece iniciativas que contribuem para a educação brasileira. Os primeiros, segundos e terceiros colocados de cada uma das três categorias (Sustentabilidade, Direitos Humanos e Inovação e Tecnologia) receberam, e R$25 mil, R$15 mil e R$10 mil, respectivamente, além de apoio para a infraestrutura da escola.

O Porvir com o professor Helder sobre os prêmios e suas perspectivas em sala de aula. Confira os principais trechos.

Porvir – O que motivou sua escolha pela carreira de professor? Você teve alguma inspiração?

Helder Guastti – Na verdade, até o início da minha juventude, eu tinha certeza de que essa era a única profissão que eu não queria seguir. Minha mãe é professora e, como moro em uma cidade pequena, todo mundo a conhece. Quando passávamos na rua, ela era cumprimentada por muitas pessoas que tinham sido seus alunos, e isso não me atraía.

Entretanto, a vida me levou para outro caminho. Entre 2007 e 2008, comecei a trabalhar como auxiliar de secretaria escolar, e me apaixonei pelo ambiente e pelo universo da escola. Foi então que decidi que queria ser professor. Tem a inspiração da minha mãe, uma referência pra mim, pela educadora que ela é, baseada em muito estudo e muito afeto com as crianças. Foi uma escolha minha muito consciente, apesar de eu vir de uma família de professores, essa decisão foi fruto do meu próprio entendimento. Hoje, não consigo me imaginar fazendo outra coisa.

Porvir – Você já tinha intenção de trabalhar com crianças do ensino fundamental?

Helder Guastti – Sim, o que eu mais gosto é de trabalhar com crianças do fundamental I, do 1º ao 5º ano, que têm entre 6 e 11 anos. Quando eu estava na faculdade, já pensava em atuar nesse segmento. Essa faixa etária me atrai bastante, especialmente pela alfabetização. Além disso, como sou professor do 5º ano, tenho outras demandas e possibilidades pedagógicas que permitem explorar atividades mais diversificadas com os alunos.

Porvir – Sobre seu projeto “Como diz o outro…”, de onde surgiu a ideia de trabalhar a cultura tradicional, como contos, trava-línguas e adivinhações?

Helder Guastti – Esse projeto não era o que eu inicialmente planejava para o ano passado. A ideia era desenvolver um trabalho baseado em As Mil e Uma Noites (coleção de histórias e contos populares indianos, persas e árabes) e no universo de Sherazade (rainha persa e narradora do livro)

No entanto, no primeiro trimestre, costumo dedicar um tempo para ampliar o repertório das crianças. Fizemos uma leitura muito interessante de um livro da autora Gabriela Romeu (jornalista, documentarista e escritora, especializada em produção cultural para infância), que aborda aspectos da cultura popular, e tivemos a oportunidade de realizar um bate-papo online com ela.

Durante a entrevista online, surgiu a expressão “como diz o outro”, algo comum aqui na nossa região, e a autora perguntou quem seria esse “outro”. Tentamos explicar que esse “outro” somos nós mesmos, as pessoas que vivem e constroem a cultura. Então, ela nos lançou um desafio: “Por que vocês não trabalham para resgatar esses elementos culturais do município de vocês?”

Porvir – Foi assim que decidiram fazer uma pesquisa?

Helder Guastti – As crianças adoraram a ideia e, vendo o entusiasmo delas, eu também me empolguei. Deixei o projeto anterior de lado e comecei a estruturar “Como diz o outro…”, inicialmente focado em contos populares da tradição oral. As crianças decidiram que o produto final seria um livro ilustrado por elas mesmas. No entanto, por serem muito participativas, a turma foi além do planejado.

Aos poucos, o projeto se expandiu para incluir outros aspectos culturais, como trava-línguas e adivinhas. Fizemos pesquisas em casa, entrevistas com familiares e interações com idosos da comunidade. Ver crianças, entre 10 e 11 anos, mediando conversas com pessoas da terceira idade foi emocionante.

Porvir – De onde veio a escolha de usar inteligência artificial no projeto?

Helder Guastti – A ideia surgiu das próprias crianças. Nosso plano inicial era que elas ilustrassem o livro manualmente. Porém, um aluno trouxe para a sala uma notícia sobre o uso indevido de IA em montagens feitas por estudantes no Rio de Janeiro para criar imagens íntimas de meninas, o que gerou debate. Refletimos sobre como uma ferramenta tão poderosa poderia ser utilizada de forma negativa em vez de contribuir com algo produtivo.

A partir daí, as crianças sugeriram que usássemos a IA no projeto. Eu adorei a ideia e decidi estudar mais sobre o tema para integrar a ferramenta Bing, da Microsoft, de maneira responsável. Descobrimos que a IA exige um trabalho criativo e cuidadoso, pois ela é muito literal. Eu fiz com os alunos um movimento de ressignificar as próprias escritas, para que elas conseguissem escrever de uma maneira que a plataforma compreendesse e que as ilustrações ficassem com a cara e a proposta que elas queriam. Todo o processo foi coletivo e democrático, e eu atuei como mediador.

Porvir – Em uma época em que a tecnologia está em alta, como você avalia o uso da inteligência artificial e de outras ferramentas tecnológicas na educação?

Helder Guastti – O primeiro passo é não demonizar nada. Muitas vezes, a educação adota a postura de proibição, mas isso só aumenta a curiosidade dos estudantes. Precisamos entender que a tecnologia faz parte da nossa realidade e, por isso, é essencial estudá-la e compreender como ela pode ser utilizada de maneira positiva.

O uso de ferramentas tecnológicas deve ser pensado para agregar conhecimento, e não apenas para aparentar modernidade. É necessário ressignificar o uso de algumas ferramentas. Trazer a tecnologia para a sala de aula, vai me agregar em quê? O diálogo com os alunos é fundamental. Não adianta planejar algo sem ouvir o grupo. É necessário refletir sobre como cada recurso pode, de fato, contribuir para o aprendizado.

Porvir – Qual é a importância dos prêmios que reconhecem a prática dos professores?

Helder Guastti – Esses prêmios são de um valor incalculável, especialmente considerando o contexto da educação no Brasil. Reconhecimentos como o Educador Nota 10 destacam projetos diversos, mostrando que a educação pública pode ser de qualidade, reflexiva, transformadora e que é possível colocar as crianças como protagonistas dos processos. Além disso, eles valorizam o trabalho intelectual dos professores e mostram que não estamos sozinhos, o que é muito significativo em uma profissão que, muitas vezes, pode ser solitária.

Porvir – Qual foi o impacto do seu projeto para os estudantes e como outros professores podem se inspirar nele?

Helder Guastti – “Como diz o outro…” é um projeto simples em essência, focado no resgate da cultura popular. Então, eu creio que é interessante outros colegas conhecerem, pois cada região tem sua própria riqueza cultural a ser explorada. Quis mostrar às crianças que elas não apenas consomem a cultura de outros, mas também são criadoras de suas próprias. Esse trabalho fortaleceu a identidade cultural e a valorização da memória coletiva, envolvendo pais, avós e a comunidade local.

O impacto foi tão grande que o projeto começou a influenciar outras turmas e famílias. Esse movimento de integração entre escola, comunidade escolar e território pode ser adaptado para qualquer contexto. Independente da sua realidade, seja uma cidade pequena ou uma cidade muito grande. Pensando agora na questão dessa contemporaneidade das ilustrações com inteligência artificial, foi um diferencial que complementou o projeto.

Porvir – Você pretende continuar com esse projeto em outras turmas? Pretende se inscrever em futuros prêmios da educação?

Helder Guastti – Gosto de criar projetos diferentes a cada ano. No entanto, uma jurada do Educador Nota 10 sugeriu que eu poderia reformular “Como diz o outro…” em novos formatos. A base estrutural com momentos de repertório, momentos de escrita, produção, eu sempre desenvolvo isso nas minhas aulas de língua com outros projetos. Talvez eu reviva o projeto quando surgir a necessidade de fazer um resgate desses processos culturais locais e brasileiros. 

Quanto a me inscrever em outros prêmios, acredito que sim. Isso depende muito do impacto dos trabalhos que eu vier a desenvolver. Esse projeto, em particular, me emocionou e encheu de orgulho, porque foi profundamente marcado pela participação das crianças. 

Fonte: Portal Porvir - Ryan Nunes

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