Centenário do Surrealismo: Como o movimento pode influenciar a criatividade dos estudantes
Movimento artístico e literário teve grande impacto cultural e teve nomes como Salvador Dalí e Paul Éluard como alguns dos principais expoentes. A escola ainda consegue aprender com o movimento?
A exploração da criatividade, do mundo dos sonhos e do inconsciente ganhou, em 1924, uma sistematização que fez desse movimento um dos mais relevantes do século 20.
Foi neste ano que o poeta, escritor e crítico francês André Breton lançou o “Manifesto Surrealista“, texto que lança as bases do movimento artístico e literário que elevou nomes como Salvador Dalí (1904 – 1989), René Magritte (1898 – 1967) e Joan Miró (1893 – 1983) nas artes e Louis Aragon (1897 – 1982) e Paul Éluard (1895 -1952) na literatura, além do próprio Breton.
Os relógios derretidos de Dalí ou os homens usando chapéu coco nas obras de René Magritte são apenas algumas das representações mais icônicas do movimento, que influenciou até mesmo para artistas pós-modernos.
Cem anos depois, os desafios que a escola enfrenta dão espaço para esse movimento? Do ponto de vista de Elvio Fernandes, editor-assistente da 100/cabeças, editora fundada em 2020 que se dedica exclusivamente à promoção de títulos surrealistas, sim. Ainda há muito o que aprender ou reverberar pela ótica surrealista. Ele concedeu entrevista ao Porvir sobre a temática.
“Nos dias atuais, em que novas tecnologias surgem em velocidades inimagináveis, em que as inteligências artificiais vêm ganhando espaço em nosso mundo – inclusive no mundo das artes –, o contato com o surrealismo permite aos estudantes reaprender que não há limites para a imaginação, exceto os estabelecidos por seus próprios desejos”, aponta.
Principais características do movimento surrealista: |
Exploração do Inconsciente: Influenciado pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud, o surrealismo procura revelar as camadas ocultas da mente. Automatismo: Técnica de criação espontânea sem censura ou controle consciente, usada para acessar o inconsciente. Imaginação Onírica: Representação de imagens de sonhos e cenários fantásticos que desafiam a lógica. Liberdade e Revolução: O movimento abraça a liberdade total de expressão e muitas vezes possui uma dimensão política e revolucionária. |
Elvio também aponta que o movimento pode ser uma maneira de ajudar os estudantes a se expressarem e compreenderem a vida, não somente do ponto de vista crítico, como também artístico.
“No primeiro Manifesto do surrealismo (1924), André Breton aproxima a infância daquilo que ele chama de ‘a verdadeira vida’. Sendo esta uma fase em que estamos mais abertos a novas experiências e mais propícios ao aprendizado, é interessante que no ambiente da sala de aula os estudantes aprendam a se expressar não só de forma crítica, mas também artística”, reforça Elvio.
Confira abaixo a entrevista na íntegra:
Porvir – Quais são as principais lições que os estudantes podem aprender com o surrealismo?
Elvio Fernandes – Nos dias atuais, em que novas tecnologias surgem em velocidades inimagináveis, em que as inteligências artificiais vêm ganhando espaço em nosso mundo – inclusive no mundo das artes –, o contato com o surrealismo permite aos estudantes reaprender que não há limites para a imaginação, exceto os estabelecidos por seus próprios desejos. O surrealismo, desde seu início, se coloca como uma corrente de pensamento que afirma o amor, a poesia e a liberdade como forças criadoras.
Enquanto a sociedade trabalha para impor limitações às nossas ideias e vontades – à nossa vida, em suma – o surrealismo agrega um conjunto de ideias capaz de romper com a ordem estabelecida de modo a colocar o indivíduo em contato com sua própria essência.
Vivemos em uma época em que as pessoas se diluem cada vez mais em ideias e valores que não são seus, seja por meio da mídia corporativa ou das redes sociais. O surrealismo entra em choque com esse estado de coisas e proporciona uma maneira diferente, mais poética, de ver o mundo. A expressão artística, então, torna-se consequência dessa nova visão.
Porvir – Como o surrealismo pode ser usado para estimular a criatividade e o pensamento crítico dos alunos?
Elvio Fernandes – No primeiro Manifesto do surrealismo (1924), André Breton aproxima a infância daquilo que ele chama de “a verdadeira vida”. Sendo esta uma fase em que estamos mais abertos a novas experiências e mais propícios ao aprendizado, é interessante que no ambiente da sala de aula os estudantes aprendam a se expressar não só de forma crítica, mas também artística.
O surrealismo dispõe, no escopo de suas práticas e ideias, de uma quantidade de jogos capazes de estimular coletivamente o pensamento e a criatividade. Por exemplo, no jogo “Cadáver delicioso”, os alunos e alunas podem se reunir em grupo e criar frases de conteúdo poético para, em seguida, debater os resultados. As regras são simples: um participante escreve em um pedaço de papel um substantivo. Deve-se dobrar o papel de modo a ocultar o substantivo escrito para que o participante seguinte escreva um adjetivo. Dobra-se o papel novamente, e o segundo participante escreve um verbo. Segue-se com um novo substantivo e, por fim, um último adjetivo. O nome do jogo provém do primeiro resultado obtido pelos participantes: “O cadáver – delicioso – beberá – o vinho – novo”.
Frases insólitas como essas provocam, naturalmente, nosso interesse seja por seu aspecto misterioso ou cômico. Jogos como esse elevam, ainda, o sentimento de comunidade em sala de aula por evocar a famosa frase do poeta Lautréamont (Isidore Lucien Ducasse, o Conde de Lautréamont, 1846-1870), muito caro aos surrealistas: “A poesia deve ser feita por todos, não por um.”
Porvir – Como você sugere que os professores apresentem o surrealismo aos alunos que estão sendo expostos a ele pela primeira vez?
Elvio Fernandes – O surrealismo costuma ser introduzido aos estudantes a partir de suas obras visuais. O impacto das imagens de quadros como os de Leonora Carrington, Joan Miró, Salvador Dalí, Remedios Varo e outros pode suscitar o maravilhamento necessário para que os alunos e alunas adentrem o universo ilimitado do inconsciente.
É importante, porém, ressaltar que o surrealismo não preza por uma forma artística em detrimento de outra. Assim, deve-se apresentar o surrealismo por meio de suas expressões visuais e também escritas para que tenhamos a real dimensão desse movimento.
Porvir – Existem obras de arte surrealistas específicas que você acredita que sejam particularmente impactantes para os alunos?
Elvio Fernandes – As pinturas de Leonora Carrington (1917-2011), ainda pouco conhecida entre nós, carregam consigo poderosas cargas imagéticas e poéticas, procissões de seres maravilhosos e míticos. No plano da escrita, um livro como Nadja, de André Breton, é capaz de inspirar os estudantes a buscarem experiências poéticas em suas vidas.
Porvir – Como o surrealismo pode ser integrado a outras disciplinas?
Elvio Fernandes – Como o surrealismo surge no contexto da Primeira Guerra Mundial e passa pela Segunda, é natural que suas obras apresentem conteúdos relacionados a essas terríveis épocas de nossa história. O livro “Lá embaixo”, de Leonora Carrington, relata a fuga da artista de uma França ocupada pelo nazismo. É também a maneira de Leonora purgar o tempo em que esteve internada no sanatório de Santander, na Espanha, com o aval de sua família, logo após sair da França. Assim, disciplinas como literatura e história podem enfocar diferentes aspectos do surrealismo, de seus artistas, poetas e escritores.
Porvir – Quais são algumas atividades práticas envolvendo o surrealismo que você recomendaria para o ambiente de sala de aula?
Elvio Fernandes – Quaisquer práticas relacionadas aos jogos, à escrita e à pintura pautadas pelo surrealismo podem ser imensamente produtivas no ambiente de sala de aula por estimularem a criatividade e a potência poética inerente ao ser humano. No entanto, deve-se sempre levar em consideração a questão da liberdade. Não se trata de criarmos obras primas, mas de exercermos nossa poesia de forma livre, lúdica e sem repressão.
Porvir – O que há de mais importante a ser destacado deste movimento e que ressurge ou ganha força agora com o centenário?
Elvio Fernandes – O surrealismo é um movimento, uma corrente de pensamento, uma forma poética de ver o mundo e de estar nele. Não é uma vanguarda artística do passado. É um conjunto de ideias que nos coloca diante de nós mesmos e exige de nós nada menos que uma existência poética e livre. Isso está claro, em linhas fulgurantes, desde o primeiro Manifesto do Surrealismo, escrito em 1924, e segue valendo para nossos dias.
Fonte: Portal Porvir - Ruam Oliveira