Como a gestão escolar pode apoiar uma avaliação que vai além das provas
Diretor da Escola da Serra, em Belo Horizonte (MG), descreve estratégias para monitorar e orientar a aprendizagem de estudantes
Há 20 anos, ao assumir a gestão da Escola da Serra, em Belo Horizonte (MG), apostei em uma proposta educacional avançada e atenta às questões da juventude e da sociedade. E uma das questões do nosso projeto político pedagógico que costuma chamar a atenção é como nossa gestão conseguiu implementar uma proposta de escola em que a avaliação é intrínseca ao processo de aprendizagem e não é baseada em provas.
Segundo o professor e pesquisador Cipriano Carlos Luckesi, no texto “Avaliação da aprendizagem na escola e a questão das representações sociais”, “avaliar é o ato de diagnosticar uma experiência, tendo em vista reorientá-la para produzir o melhor resultado possível; por isso, [uma boa avaliação] não é classificatória nem seletiva; ao contrário, é diagnóstica e inclusiva”. Portanto, falar de avaliação é abordar todo o processo de aprendizagem.
A prova, como instrumento de aferição de um conteúdo, de uma ação, de um projeto, é uma “fotografia” momentânea, fria, que se restringe ao objetivo específico daquele certo momento. Incapaz de reconhecer as variáveis de uma vida complexa, dos efeitos da realidade sobre o estudante, declara sua total inadequação a um processo avaliativo que pretenda ser parte do percurso do estudante rumo ao apropriar-se do conhecimento e ao crescimento como pessoa e cidadão.
Uma escola onde a construção do conhecimento conta com a autoria efetiva de seus alunos inclui o processo avaliativo em todas as situações reais de aprendizagem. Abre-se terreno, assim, para uma diversidade de atividades que englobam a construção de um pensamento crítico, o desenvolvimento de habilidades de vida, o exercício da autoavaliação e da metacognição. Esses são elementos que enriquecem a experiência dos estudantes ao proporcionar um olhar sistêmico e complexo para o percurso educacional de cada um.
Na Escola da Serra, o nosso principal instrumento de orientação da aprendizagem do aluno é o Roteiro de Pesquisa, que cumpre também a função de avaliação da aprendizagem, coerentemente com o entendimento de que a avaliação deve ser parte do processo. É uma peça que orienta o estudante nos trabalhos de pesquisa do objeto a ser conhecido ou do projeto a ser desenvolvido; um guia para proporcionar o protagonismo do estudante, incitando-o a se lançar na aventura da descoberta; um estímulo para que realize um processo de metacognição que o tornará consciente da elevação do seu nível de empoderamento propiciado pelo domínio de um novo conhecimento. Pelo lado do educador, constitui um recurso de acompanhamento da trajetória do aluno, permitindo orientação e ajuste de rota, registro dos passos dados e conclusão com resultados baseados nos objetivos traçados.
Esse instrumento procura explicitar e valorizar as várias fases de um processo de aprendizagem significativo. As seis etapas que o estruturam (Conexão, Planificação, Investigação, Elaboração, Aplicação e Apropriação) se pautam em uma lógica de produção de conhecimento que resulta em aprendizagem ampla, profunda e autoral. São elas, conforme explicitadas em nosso projeto pedagógico de 2023):
– Conexão (Lançando âncoras): é o ponto de partida de qualquer processo de produção do conhecimento, pois é aqui que o aluno deve estabelecer um vínculo forte e significativo com o conteúdo a ser trabalhado. O propósito desta etapa é contextualizar o tema de estudo, apresentar os objetivos de aprendizagem, estimular o aluno a mobilizar os conhecimentos prévios, levantar hipóteses e definir perguntas de pesquisa orientadoras do trabalho.
– Planificação (Eficiência e eficácia): uma vez que o aluno conhece o assunto da pesquisa, tomou consciência do que sabe (ou acha que sabe), já tem expectativas sobre o conhecimento a ser construído e sabe quais etapas deverá cumprir, é hora de se organizar para o trabalho – condição essencial para a sua eficiência (processo competente) e eficácia (resultado adequado). Quando se dedicará a ele? Onde? Que recursos necessitará? A quem poderá recorrer? Quanto tempo levará em cada fase? Que metas pode estabelecer? Caso haja atraso, qual será o “Plano B”? É importante ressaltar que essas perguntas devem ser relativizadas conforme os níveis de autonomia dos alunos, bem como consideradas suas idades. A noção de tempo para crianças pequenas é bem diferente da noção que têm os adolescentes, portanto a planificação deve se pautar por essas variáveis.
– Investigação (O mergulho): esta é a etapa em que o aluno se dedicará à pesquisa do assunto, explorando diversas fontes sugeridas pelo professor e/ou buscando outras de sua escolha, desde que confiáveis, aspecto importante da aprendizagem a ser orientado pelo professor. Aqui ele precisará construir uma visão ampla e profunda sobre o tema. A cada consulta – seja a textos, vídeos, experimentos, pessoas (entrevistas) –, o aluno deverá fazer registros adequados: grifo de trechos, anotações, fichamentos, resumos, quadros síntese etc. Esses registros visam organizar e armazenar as informações coletadas, viabilizando melhor compreensão e facilidade de acesso em posterior consulta.
– Elaboração (Fazendo-se autor): nesta etapa, o foco é a articulação, organização e sistematização das diferentes informações levantadas na Investigação, em um todo bem estruturado. Aqui, o aluno compilará os seus registros utilizando estratégias de organização de informações e do pensamento, garantindo, assim, uma compreensão ampla e precisa do novo conhecimento. Ele poderá construir linhas do tempo, quadros comparativos, mapas conceituais, diagramas ou textos, exercitando as habilidades de coordenação de ideias, síntese, abstração. Esta é a fase em que o aluno transformará as informações e dados levantados na fase de Investigação em conhecimento, na forma de um trabalho orgânico e competente.
– Aplicação (A prova dos 9): uma vez construído conceitualmente o novo conhecimento, é hora de submetê-lo à prova de realidade, colocando-o em prática. Aqui, o aluno deverá exercitar o novo conhecimento em situações diversas, reais ou hipotéticas, estimulando o raciocínio e a extrapolação, levando a aprendizagem a um nível mais concreto. Por vezes, essa fase explicitará lacunas no conhecimento, que deverão ser sanadas com o retorno à fase de investigação para complementação dos estudos. As novas descobertas exigirão ajustes, também, no produto da fase de elaboração e, naturalmente, um retorno à fase de aplicação para confirmar que o conhecimento, agora, está consistente.
– Apropriação (Conhecimento é poder): é chegada a hora de refletir sobre a trajetória percorrida para alcançar esse aprendizado e identificar o que funcionou bem e o que não, assim tomando consciência da própria maneira de aprender, em um rico processo de metacognição. Esta é a fase de “desescolarização” do conhecimento, de tomada de consciência do novo nível de empoderamento proporcionado pela aquisição do novo saber e pela vivência do processo de sua construção. Como todo conhecimento diz respeito ao ser humano, seu ambiente e sua vida, o aluno deverá buscar esse nexo, refletindo sobre o significado do novo aprendizado para seus projetos, seus sonhos, seu contexto, a relação do novo conhecimento com assuntos da atualidade, possibilidades de seu emprego em benefício da comunidade, do país, do planeta.
Cada etapa possui objetivos específicos de desenvolvimento de habilidades que são determinantes na construção do conhecimento e, em cada uma delas, o exercício avaliativo promove a consciência do que foi aprendido e da qualidade do processo de aprendizado de cada aluno. Constituem, portanto, uma trajetória acompanhada por avaliações constantes, reflexivas e formativas, que consideram, respeitam e valorizam a singularidade de cada aluno, especialmente a sua forma de aprender.
Para organizar, sistematizar e informar sobre o percurso de cada estudante, criamos também um sistema acadêmico informatizado, o RDA (Relatório de Desenvolvimento do Aluno). Por meio dele é possível saber como o estudante está avançando em cada área de conhecimento, ter ideia dos desafios curriculares a serem cumpridos e comunicar esse desenvolvimento às famílias. Ele é a representação de um modelo de avaliação diagnóstica, processual e formativa que descreve percursos e movimentos do estudante.
Buscamos incessantemente formas de aperfeiçoar as nossas estratégias de promoção e avaliação da aprendizagem, fortalecendo-a em favor do que mais interessa: estudantes aprendendo significativamente, conscientes e responsáveis de seu papel nesse processo.
Certamente nos perguntarão: Mas como eles vão lidar com a vida real cheia de provas? Como vão se sair no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e nos vestibulares se não convivem com a prova? É simples: jovens que aprenderam a pensar por si mesmos, a pesquisar e produzir conhecimento, a planejar e avaliar, a desenvolver o autoconhecimento, a protagonizar seu próprio processo de aprendizagem, a enfrentar desafios com preparo, serenidade e confiança não terão dificuldades em resolver com competência situações que a realidade lhes apresente!
Gerir uma proposta como essa sempre foi um desafio, mas a certeza de estar proporcionando às nossas crianças e jovens uma educação sensível, ousada, alegre e consistente, bem como a notável competência e qualidade humana dos nossos formandos, é algo que me alimenta diariamente para enfrentar as barreiras conceituais e resistências conservadoras.
Sérgio Godinho - Diretor e proprietário da Escola da Serra, em Belo Horizonte (MG), desde 2004, foi diretor pedagógico da Escola Técnica de Formação Gerencial Sebrae Minas de 1996 a 2002. Pai de 3 filhas, é psicólogo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), atuou na área de atendimento ao menor em situação de risco social. É tradutor de inglês premiado pela Fundação Nacional do Livro em 1998 (“Melhor tradução infanto-juvenil”), autor do livro “A Nova Educação e Você”, publicado pela Autêntica Editora e co-autor do livro “Espaço Educador”, publicado pela Editora Crivo em 2023.
Fonte: Portal Porvir - Sérgio Godinho