Como garantir o direito à educação infantil?
Simpósio Internacional marca lançamento da Fundação Bracell e reúne especialistas para reafirmar o direito à educação de qualidade desde a primeira infância - e os impactos na vida adulta
Primeira etapa da educação básica, a educação infantil, dividida entre creche (até os 3 anos) e pré-escola (para crianças de 4 e 5 anos), é dever do Estado e direito assegurado pela Constituição. Mas há um longo caminho a ser percorrido pelo Brasil para ofertá-la com qualidade: o país ainda não conseguiu cumprir boa parte das metas estipuladas há dez anos pelo Plano Nacional da Educação, e ainda registra 59,8% das crianças mais pobres, entre 0 e 6 anos, que nunca frequentaram creche ou pré-escola.
O debate sobre desafios e oportunidades da etapa, bem como a urgência de investimentos e formação continuada, marcaram o 1º Simpósio Internacional de Educação Infantil. Realizado em São Paulo nesta quinta-feira, 27, o evento reuniu especialistas, pesquisadores e representantes governamentais para marcar o lançamento oficial da Fundação Bracell, que surge para apoiar a agenda educacional no Brasil com foco em três pilares: educação infantil, primeira infância e desenvolvimento de lideranças.
Na fala dos participantes e nos registros dos documentos distribuídos durante o encontro, ressaltaram-se aspectos positivos e inquestionáveis da educação infantil. Pesquisas realizadas em diferentes países trazem resultados locais que também têm impacto global.
Na Dinamarca, os benefícios de frequentar creches e pré-escolas se refletem na saúde da vida adulta, com hábitos e alimentação mais saudáveis. Na Jamaica, aumenta-se a chance de conseguir bons empregos ao ingressar no mercado de trabalho. No Uruguai, a capacidade de atenção e participação em sala de aula são acentuadas. No Brasil, fica evidente a melhora e o desempenho nos demais anos da educação básica.
Há, ainda, um outro ponto comum entre os debatedores: é preciso reconhecer o papel da educação infantil. Creches e pré-escolas não são meros espaços nos quais pais e responsáveis deixam os filhos para brincar e poder trabalhar: são, sim, espaços de aprendizagem, voltados às descobertas, ao aprender a conviver e ao desenvolvimento pleno da infância.
“A educação infantil reconhece o desenvolvimento integral e integrado, os cuidados responsivos. É um direito ao desenvolvimento pleno, que não se reduz a ser preparatório para o ensino fundamental. Ela tem identidade própria, contribui para o percurso de vida da criança”, explica Rita Coelho, coordenadora-geral da educação infantil na Secretaria de Educação Básica do MEC (Ministério da Educação).
Garantias fundamentais
Em âmbito nacional, a quinta-feira também marcou uma vitória política para a educação infantil: em Brasília, foi assinado um decreto que institui as diretrizes para as políticas da primeira infância e instaura um Comitê Intersetorial para coordenar a implementação. O documento, que reforça o compromisso do país com a primeira infância, foi comemorado pelos participantes do Simpósio. Alexsandro Santos, diretor de políticas e diretrizes da educação integral básica do MEC, ressaltou a importância:
“Não basta garantir o desenvolvimento adequado dos bebês e das crianças, não basta termos creches e pré-escolas de boa qualidade. Isso é fundamental, estruturante. Mas se a gente não tiver outras garantias que fazem parte desse conjunto de instrumentos que sustentam o desenvolvimento da criança e do bebê, certamente os impactos serão restritos”, afirma. “Falo aqui de segurança alimentar, de cuidados parentais com famílias e cuidadores dessas crianças, desses bebês, para além do tempo da creche ou da pré-escola. Falo aqui do serviço de saúde e proteção que, em uma sociedade tão desigual, ainda são muito insuficientes.”
Apesar do número de matrículas na pré-escola ter aumentado em 10 anos, de 89,1% para 93,9%, Alexsandro pede cautela. “É preciso colocar uma lente aumentativa nas modalidades de educação infantil que chamamos de regular”, explica, em referência à educação bilíngue de surdos e à garantia de aprendizado das crianças indígenas.
“Um bebê surdo que encontra uma turma de crianças que não usa Libras (Língua Brasileira de Sinais) está privado de diálogo na sua própria língua na primeira infância, do mesmo jeito que crianças indígenas, falantes de suas línguas naturais, encontram professoras e crianças que não falam suas línguas naturais e também estão privados. Como a gente presta atenção na universalidade da educação infantil?”, questiona.
Outro aspecto que merece atenção, de acordo com Alexsandro, é a garantia de serviços aos quais crianças matriculadas (e suas famílias) têm acesso. Se a criança está fora da creche, a chance de estar fora de outros serviços sociais é altíssima. “Se nós não chegamos por meio do serviço educacional, outros serviços estão sendo negados e direitos estão sendo violados. Nós precisamos avaliar com uma lupa grande essa questão do acesso, que foi produzido ao longo da história de maneira regressiva: na educação infantil, entrou primeiro quem menos precisou; depois fomos atrás daqueles que mais precisam.”
Compromisso e ação para a educação infantil
O Simpósio também apresentou a “Declaração de Tashkent e Compromissos de Ação para Transformar a Educação Infantil e os Cuidados na Primeira Infância”, da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Lançado na Conferência Mundial sobre Políticas de Educação Infantil e Cuidados na Primeira Infância em 2022, na cidade de Tashkent, capital do Uzbequistão, o documento fortalece o compromisso dos 193 países-membros em assegurar o desenvolvimento infantil de qualidade, com prioridade aos cuidados referentes à educação infantil suas políticas, assim como a melhoria de investimento nessa área.
“A beleza desses encontros é ver o consenso entre os integrantes. Eles entenderam a importância de estender os cuidados na primeira infância no período que abrange o nascimento até os 8 anos de idade, para garantir sua universalidade”, comenta Carolina Belalcazar Canal, especialista em primeira infância da Unesco no Uruguai, que participou de todas as etapas da construção do documento.
A Declaração de Tashkent apresenta quatro temáticas centrais: a universalização da educação infantil, a formação e a valorização dos profissionais, o uso e o monitoramento de dados para a produção de políticas públicas, tendo como base as evidências científicas e o aumento do financiamento.
“Trata-se de uma ferramenta internacional de advocacy (estratégia para mudar uma política pública em nome de uma causa) para a educação infantil e cuidados na primeira infância”, explica Rebeca Otero, coordenadora do setor de educação da entidade. “Educação é questão de direito da criança e investimento é essencial para que esse direito seja exercido”, ressalta.
As mesas da tarde foram dedicadas a temas como formação inicial e continuada dos professores da educação infantil e ao regime de colaboração para a implementação da etapa.
Fonte: Portal Porvir - Ana Luísa D'Maschio