Os desafios das escolas bilíngues de libras-português
Como a inclusão da Libras nas práticas pedagógicas auxilia na mudança da visão do docente, levando à revisão de metodologias e à derrubada de estereótipos
Em 2017, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) trouxe como tema da redação “Os desafios para a formação educacional dos surdos no Brasil”, proporcionando aos estudantes em fase de conclusão da educação básica uma oportunidade para uma discussão mais aprofundada sobre a educação inclusiva.
A educação bilíngue, que considera a Libras (Língua Brasileira de Sinais) como primeira língua e o português escrito como segunda, já está presente na LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) desde agosto de 2021 por meio da lei 14.191. Conforme essa legislação, a oferta dessa modalidade educacional está prevista desde a educação infantil, estendendo-se ao longo da vida.
Entre os objetivos destacados pela lei estão: “proporcionar aos surdos a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades e especificidades e a valorização de sua língua e cultura” e “garantir aos surdos o acesso às informações e conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades surdas e não surdas”, como descreve o artigo 78-A, incluído na LDB.
Postura docente
Essa inclusão não se limita apenas ao currículo e abrange também a produção e acesso a materiais didáticos, bem como a presença nas escolas de professores devidamente formados e especializados em Libras.
Para que as escolas sejam verdadeiramente inclusivas e possam atender adequadamente estudantes surdos, surdo-cegos, com deficiência auditiva sinalizantes, surdos com altas habilidades ou superdotação ou com outras deficiências associadas, é preciso que exista uma conscientização sobre o tema.
“O professor além de mediador do conhecimento, desempenha um papel de grande relevância na formação social do sujeito, sendo assim, ao pensar no aluno surdo, é importante assumir a responsabilidade de aprender a sua primeira língua (libras), dessa forma, será possível incluí-lo, reconhecer sua identidade, diminuir barreiras de comunicação e garantir um ambiente mais inclusivo e acessível”, aponta o professor Danilo Dias, coordenador pedagógico da educação infantil na secretaria de educação de Abaré (BA), professor universitário e autor do projeto “Libras na Escola Inclusiva”.
O projeto, publicado no Diário de Inovações aqui do Porvir, surgiu durante o período de distanciamento social e aulas remotas devido a covid-19. Inspirado por uma aluna surda de 4 anos de idade, Danilo relatou que pode conhecer as dificuldades de acessibilidade e comunicação enfrentadas pela menina. Por isso, sugeriu a inclusão de libras no cotidiano da escola. Leia o relato completo aqui. Atualmente, o projeto é conduzido em todas as escolas de ensino infantil da rede pública de Abaré.
O docente conta que incluir libras em suas práticas fez com que repensasse as metodologias que utilizava, além de ajudá-lo a identificar e desconstruir estereótipos relacionados às pessoas surdas.
A Libras é reconhecida em todo o território nacional como meio legal de comunicação e expressão. De acordo com a lei 10.436, de 2002, a língua brasileira de sinais deve fazer parte dos currículos dos cursos de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior.
Apesar de não substituir a modalidade escrita da língua portuguesa, ela não é uma transcrição do português falado oralmente, mas sim uma língua completa, com normas e regras próprias.
A importância de existirem escolas bilíngues
“O Brasil não é só português”, afirma Rimar Segala, professor na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), mestre em tradução e doutor em linguística. Ele aponta que é necessário fomentar e ampliar a criação de escolas bilíngue libras-português porque pessoas surdas nascem no Brasil, e esse é o primeiro ponto. “Nós surdos temos o direito de comunicação, está na legislação”, afirma o docente.
Rimar também avalia que a ampliação de escolas nessa modalidade proporciona um aumento da compreensão a respeito da cultura surda e também do direito que pessoas surdas têm à educação.
Danilo Santos, consultor em acessibilidade e professor de Libras na Mais Diferenças, OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) voltada à cultura inclusiva, concorda com Rimar. Ele afirma que ainda há muita falta de informação sobre essas escolas, o que elas são e como estão organizadas.
Um interesse de todas as pessoas
A educação especial na perspectiva inclusiva beneficia pessoas com e sem deficiência porque por meio da inclusão, ambos os públicos podem interagir entre si e conhecer uns aos outros, ampliando o repertório individual de cada estudante.
Carla Mauch, coordenadora da Mais Diferenças, argumenta que é necessário o fomento de escolas bilíngue Libras-português em todos os municípios brasileiros para que não se corra o risco de voltar a um modelo de grandes escolas exclusivas para surdos, algo que os exclui em diferentes níveis (tanto em relação à sociedade, quanto a suas famílias, por exemplo).
Necessidade de formação
A precária formação docente nesta área também dificulta o avanço de práticas mais inclusivas, aponta Rimar. O professor afirma que, do ponto de vista histórico, a libras “sempre esteve atrás e os surdos não eram considerados como sujeitos de direito”. “A gente não tem uma história forte de formação e de conhecimento da Libras”, diz.
Dentro de uma escola bilíngue, principalmente, o professor afirma que é essencial que todas as pessoas aprendam Libras – de professores a famílias. Para ele, a comunicação entre surdos e ouvintes só irá melhorar quando ambos os públicos compreenderem a língua de sinais.
O professor Danilo, de Abaré, afirma que seu planejamento de aulas mudou completamente desde que passou a levar em consideração a libras. “Sempre me preocupo em elaborar e definir atividades que permitam a inclusão no sentido mais real da palavra, que oportunize a interação entre surdos e ouvintes. Neste sentido, sempre incluo nas aulas, recursos visuais, jogos, atividades de grupos e exploração de áreas externas da escola, trabalhando sempre numa perspectiva bilíngue”, afirma.
Ele concorda que um dos grandes desafios desse segmento é o corpo docente ter conhecimento de libras. “Apesar dos educadores entenderem esta necessidade, ainda hoje o maior desafio tem sido as barreiras de comunicação devido a falta de interesse de alguns profissionais em aprender a língua de sinais. Essa situação impacta diretamente na rotina de outros professores que trabalham na tentativa de promover um ensino mais inclusivo.”
Outros desafios
Carla e os demais especialistas ouvidos para essa reportagem afirmam que ainda há outro grande entrave: são as práticas ainda muito capacitistas presentes na sociedade, que colocam os estudantes com deficiência como aqueles que precisam de muitos profissionais especializados.
“Pensar numa escola bilíngue e inclusiva depende de uma mudança na cultura de uma sociedade. Em relação específica à escola, precisa ter investimento, formação de professores e, cada vez mais, profissionais surdos. Não se constrói escola bilíngue e inclusiva sem a presença de profissionais surdos”, afirma Carla.
A coordenadora ressalta que é também importante avançar na relação entre saúde e educação, porque às vezes o olhar médico se sobressai, tendo um olhar voltado para a correção da surdez.
“Não existe um único desafio, mas existe uma amálgama de desafios e de ações que a sociedade ainda não vem implementando de forma séria e sistemática”, destaca.
Fonte: Portal Porvir - Ruam Oliveira